Crítica sem spoilers
A propósito li o livro sem ao menos saber qual era o gênero, então farei o mesmo por você nos primeiros parágrafos dos meus comentários e depois falo do gênero e de alguns pontos altos do estilo e da narrativa, certo?
A primeira linha do livro já anuncia que a protagonista perdeu um braço na última volta para casa e somente no capítulo seguinte ficamos sabendo para onde ela vai que é tão perigoso.
Sou um leitor implicante que não gosta quando a história é escrita seguindo um checklist de técnica de escrita, mas já nos primeiros parágrafos percebemos que, apesar de ser uma estratégia comum para gerar tensão e expectativa logo no início da leitura mantendo-as até o final, Octavia parece ter inventado a técnica de tão fluida e naturalmente que ela a utiliza. É o tipo de originalidade que acontece quando a pessoa que escreve vive a história conforme a desenvolve ou, pelo menos, é influenciada por ela na mesma medida que a influencia (ou até mais).
Kindred, Laços de Sangue é uma criação excelente em todos os aspectos que importam e é bom destacá-los pois o gênero não é o que importa nessa aventura… Sim, ao menos é bom te avisar que é uma história com aventura para evitar que você deixe de ler por achar que é um outro estilo que você não gosta e… se você não gosta de aventura ainda sugiro que leia justamente por causa dos aspectos que importam.
Kindred trata de choques culturais, das transformações que nossa civilização assistiu nos últimos séculos, na empatia necessária para entender quem vem de uma cultura intensamente diferente da sua e, uma das mais importantes na minha opinião, nos faz perceber que não são apenas a tecnologia e a ciência que avançam, nossa moral, sabedoria, empatia e humanidade também avançam, mais devagar, claro, afinal ciência e tecnologia não dependem da transformação de bilhões de pessoas, basta um punhado para fazer avanços exponenciais, mas isso é outra história que não tem nada a ver com Kindred.
Pronto! Aí estão comentários para quem quer ler o livro sem ter ideia do que se trata, sabendo apenas que tipo de questão humana ele aborda e que é escrito com genuinidade e qualidade literária.
A propósito, antes de falar um pouco do gênero, quero elogiar a tradução de Carolina Caires Coelho (que tenho o prazer de conhecer) que manteve a fluidez do texto e, até onde pude perceber, o registro estilístico da autora (o livro de da década de 70 do século passado). O elogio se estende, claro, à equipe editorial que a gente sabe que também tem um papel central na qualidade de um texto além dos demais detalhes de capa, diagramação etc.
Vamos lá!
Octavia Butler é uma das primeiras mulheres negras a escrever ficção científica e, não só isso, mas conseguir visibilidade para a qualidade do seu texto e histórias.
Em Kindred a ficção científica é periférica, apenas um fenômeno científico poderia produzir o que acontece, mas Octavia não perde tempo explicando os detalhes da ciência, eles não são importantes e há muito a dizer nas mais de quatrocentas páginas do livro que em nenhum momento se arrastam.
Adana, que se apresenta como Dana, se vê arrastada de 1976 para 1819 uma uma fazenda de pessoas escravizadas e brancos escravagistas e logo descobre a razão dessas transferências através do tempo, o que a ancora lá e como ela volta, mas não o mecanismo que faz com que isso aconteça, no entanto isso não é importante e sim os contrastes entre as duas sociedades lembrando que em 1976 ainda estávamos longe de corrigir os desvios morais do século XIX (ainda estamos hoje).
É uma história com diversas oportunidades para refletir sobre o apagamento de uma cultura no processo de dominação dela, mas a questão mais presente que vi obra pode causar bastante desconforto em quem lê: a empatia com a perversidade de quem é parte de uma estrutura social perversa.
Quando vivemos em uma perversidade endêmica é claro que há mérito em sermos contrários a ela, em sermos subversivas, mas e as pessoas que não tiveram chance ou não conseguem se desvencilhar da programação social, política e moral do próprio tempo em que vive?
Pode ficar mais fácil pensar sobre isso partindo de um comportamento neutro, mas obsoleto: pessoas tolerantes às diferenças são vistas como boas pessoas, tolerância é uma meta de muitas reflexões e campanhas pela diversidade, mas há tempos também percebemos que a tolerância é apenas uma intolerância de rédeas e que devíamos ter admiração, curiosidade, interesse pelo diferente e, se encontrarmos com alguém vindo de 2170 talvez a pessoa tenha que ser compassiva com a nossa dificuldade em entender o mal por trás da tolerância.
No entanto talvez essa questão da história de Octavia Butler fale alto para mim, homem branco, cis, privilegiado em uma cultura fortemente racista e que precisa lidar diariamente com os preconceitos em que cresceu e dos quais precisa se livrar.
Desconfio que uma mulher, uma mulher negra, um homem negro, filhos e filhas brancos com pai ou mãe negros vejam outros destaques na história de Dana.
Seja como for essa é uma característica das melhores histórias: elas não são apenas uma série de fatos impactantes, elas são a interação de valores de vida, de trajetórias de amadurecimento, transformação e descobertas pessoais que entram em ressonância com as nossas próprias trajetórias.
Leia!
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