Aqui ou ali pintam artigos falando que a Netflix quer fazer de Wednesday / Wandinha a próxima Stranger Things, o que faz sentido já que foi a estreia em inglês mais assistida na história da Netflix e foi exibida por 341 milhões de horas, seis milhões a mais que a quarta temporada de Stranger Things.

Realmente é um sucesso comercial impressionante e eu mesmo gostei muito e maratonei.

Só que essa mania de analisar as coisas pelo “sucesso” é muito falha. Quantas histórias imortais foram fracassos comerciais e depois se fixaram na cultura e no imaginário da nossa civilização? Ou pelo menos permaneceram vivas depois que outros sucessos foram esquecidos? Inclusive Squid Game, também da Netflix, fez mais de 500 milhões de horas na primeira semana, índice que nem Stranger Things atingiu, mas qual série é mais lembrada?

Claro que é ótimo para a indústria quando as duas coisas acontecem, né? Como foi com Guerra nas Estrelas, por exemplo que, aliás, acho que é um ótimo exemplo. Assim como Buffy, a caça vampiros.

Acho que Stranger Things se enquadra bem nessa categoria com características que acho difícil Wandinha reunir nas próximas temporadas.

Então esse post é sobre o que torna uma história inesquecível, empolgante e parte da nossa cultura.

Um universo a explorar

O universo de Wandinha é praticamente o mesmo que o nosso, apenas com algumas categorias de pessoas fora do comum para conhecermos. Já em Stranger Things, Guerra nas Estrelas, Jornada nas Estrelas, Senhor dos Anéis e até Buffy temos realidades a conhecer. Um mundo paralelo em Stranger Things, a ordem Jedi e diversas civilizações em Guerra nas Estrelas, a Federação e mistérios da galáxia em Jornada nas Estrelas, todo um mundo de fantasia que tem até mito de criação em Senhor dos Anéis e até mesmo Buffy tem um mundo real paralelo de monstros, demônios e bruxas para conhecer.

Muita gente gosta de ter outras realidades para conhecer porque é como se fizéssemos parte delas, como se pudéssemos descansar um pouco da nossa realidade, que parece chata porque já a conhecemos muito bem, e sermos outras pessoas. Vide os fandoms e cossplays (e não tem nada de errado neles). Também podemos refletir um pouco sobre as pessoas que vivem realidades paralelas delirantes como terraplanistas e “teoristas das conspirações”, mas aí já é outra história que envolve dissociação da realidade.

Seja como for nota-se que realidades alternativas tem um apelo muito forte em boa parte das pessoas.

Jornadas épicas

A jornada de Wandinha é um mistério policial. Nada de errado nisso, mas compare com as jornadas das obras que já citei e grande parte das que se tornaram inesquecíveis.

Stranger Things e Buffy se parecem muito nesse aspecto. A cada temporada algo grande precisa ser salvo, seja a escola, uma invasão sobrenatural que ameaça a cidade ou até a ameaça do fim da humanidade… Aliás, nesse tópico é inevitável lembrar de Doctor Who, que bem… Vez por outra salva o Universo ou até vários Universos, né?

No entanto a jornada épica se enfraquece sem sacrifício, e por isso trouxe para cá Doctor Who.

Vou evitar spoilers aqui porque vai que você não viu ainda os de alguma dessas criações épicas.

O sacrifício não pode ser vão, precisa ser alguém espontaneamente se sacrificando pelo bem maior. Também não serve o sacrifício por uma única pessoa pois isso é amizade ou amor. É lindo, mas não é épico e nos marca de outros jeitos.

Pode ser uma imagem messiânica que devíamos abandonar, no entanto o impacto simbólico do grupo ou da pessoa que se sacrifica por uma missão de grande importância é forte demais e provavelmente pouca gente fica impassível diante de histórias assim.

Desenvolvimento das personagens

Esse é um tópico em que Jornada nas Estrelas, Guerra nas Estrelas e até Senhor dos Anéis não se destacam. Podem até ser considerados bem fracos, mas não é o caso de Stranger Things, Buffy e até Xena, a princesa guerreira (desculpe, não resisti).

Não darei os detalhes, para evitar spoilers, mas preste atenção na jornada de Nancy e Steve em Stranger Things, da Willow e da Cordélia em Buffy, da Daniele em Xena.

Personagens em geral se desenvolvem de três jeitos:

  • Vamos conhecendo a história delas, mas não mudam realmente, não amadurecem;
  • Passam por pequenas mudanças se tornando mais independentes, trocando de emprego ou deixando relacionamentos ruins e descobrindo bons relacionamentos;
  • Atravessam verdadeiras jornadas de transformação em que se transformam como uma semente em uma grande árvore.

Nada errado com esses jeitos e nem esgotei as formas como personagens mudam, mas a última é épica e nos levam àquele tipo de empolgação que nos faz levantar da cadeira e gritar “É isso!!! Você conseguiu!!!”. É ainda mais empolgante quando sentimos que nos transformamos junto com a personagem. Um bom exemplo é Arya Stark, de Game of Thrones, mas também o clubinho todo em torno da Eleven e, à propósito, das crianças de It, do Stephen King,

Arcos das temporadas

Teve aquele filme Cocoon, que foi seguido de mais umas duas continuações que… contavam basicamente a mesma história do primeiro.

O caso de Stranger Things merece um post inteiro, que ainda vou escrever, mas esse é um ponto em que ele é muito forte, então tenho que citar pelo menos por alto.

Assim como personagens podem se transformar epicamente também as histórias podem cumprir arcos que nos colocam em contato com grandes dimensões das questões humanas.

Na primeira temporada de Stranger Things estamos descobrindo o senso de coletividade e de amizade. Na segunda estamos encarando o amadurecimento e o desafio do mundo adulto. Na terceira vemos a realidade mais cinza em que bem e mau não são tão claros e, finalmente, na quarta, nos deparamos com a impotência diante de uma realidade muito maior que nós.

Vou dizer que não consigo pensar em outra série tão forte nesse aspecto. Talvez Fundação, mas o livro, não a série da Apple.

Pode ser que Wandinha se saia muito bem nisso e acho que é um bom caminho para fazer dela não só um sucesso comercial, mas também cultural e com vida longa. A primeira temporada me parece ser uma iniciação na empatia, algo que realmente a nossa civilização está precisando muito.

Conclusão: Wandinha é pior que Stranger Things?

De jeito nenhum! É apenas outro tipo de história que não devia ser comparada a uma jornada épica em vários sentidos. Pode até vir a ser melhor e deixar uma marca longeva, mas a comparação, baseada no sucesso comercial, cria uma expectativa que pode até prejudicar o futuro da série.

Se assistirmos Wandinha pensando que estamos vendo a sucessora de Stranger Things esperaremos o mesmo tipo de empolgação, de momentos chocantes e passagens que ecoam por anos em nossos sentimentos, o que pode não acontecer gerando decepção.

Vou confessar que tenho receio da próxima temporada de Wandinha perder totalmente a mão e vir a ser a última, mas não me leve a sério porque sempre tenho esse medo hahahaha!

O importante é asssistir Wandinha por Wandinha e não comparando a outras obras que não são da mesma categoria.

Crédito da imagem que ilustra o post

Imagem que ilustra o post: Wednesday Crosses The Milestone Of 5 Billion Streaming Minutes Twice But Still Lagging Behind Stranger Things Season 4