Esse post terá spoilers, mas somente os essenciais.
O que tem de ruim em Fundação não está nas coisas que acontecem, mas no sentido do que acontece, então, a menos que você seja uma pessoa bem exigente em termos de spoilers é capaz desse post não revelar nada que tire a graça de assistir a série ou ler o livro, aliás pode até ajudar ao saber previamente o que esperar.
Sou um fã chato?
Antes acho necessário dizer que não sou desses fãs chatos que reclamam da mudança da cor das roupas dos personagens ou mesmo da troca de gêneros, raças ou até mesmo mudanças na narrativa. Pelo contrário! Eu gosto. Traz a obra para a contemporaneidade, lança novas visões sobre o contexto em que foi escrita etc.
Acho até mesmo interessante quando o sentido original é totalmente invertido, como acontece nas duas séries de Galactica… Tá, a serie original tinha ares fascistas e a moderna coloca a importância da autonomia democrática como um dos temas centrais, então não é um bom exemplo, mas a questão é que eu sempre avalio o valor da obra em si procurando separá-la do que lhe deu origem. Ah! A série Wandinha é um exemplo de adaptação que incomoda muitos fãs, mas achei boa em sua proposta.
Porque os livros são especiais?
Dito isso…
A obra de Asimov se destaca por muitas razões, mas considero que a maior delas é a proposta, correta na minha opinião, que o curso da história é fruto da coletividade e que esse curso só pode ser previsto com uma astronômica analise do conjunto de tendências sociais, culturais, religiosas etc. Um tema, aliás, que inspira o meu blog sobre cibercultura, o Meme de Carbono.
Outro destaque que vou fazer, já pensando na comparação com a série da Apple TV, é que nós sentimos a grandiosidade do Império em sua diversidade de sistemas, culturas e trilhões de pessoas espalhadas pela galáxia. Também sentimos a passagem dos séculos. Tudo é grandioso em Fundação.
Ah! Temos que acrescentar mais uma coisa… umas coisas…
Cada situação na obra de Asimov, cada crise Seldon, é resolvida com interessantes e intrincadas articulações políticas, diplomáticas e estratégicas. As personagens são complexas ou pelo menos tem camadas. E Asimov nem era um escritor brilhante na minha opinião. Só mais uma coisa: definitivamente não é uma obra maniqueísta. Bons e maus transitam quase sempre entre o egoísmo e a compaixão, o egocentrismo e a consciência de coletividade.
Onde a série acerta?
Decidi falar do que tem de bom, antes de falar do que acabou me deixando decepcionado.
Em primeiro lugar visualmente é um espetáculo! Não só pela grandeza das cenas, mas pela beleza estética das cidades, prédios, ambientes e figurino. É uma série feita com esmero e é visualmente agradável.
A escolha de atores e atrizes, a troca de um bando de personagem masculino e provavelmente branco por um elenco mais realista é muito bem vinda e as interpretações são excelentes.
Outra qualidade está no carisma das personagens, inclusive nas que foram inventadas para a série (sou fã de irmão Constante). Nós nos identificamos e nos envolvemos emocionalmente com praticamente todas, inclusive as que são antagonistas. Mesmo os bons sendo meio bons demais e os maus meio maus demais, meio achatados, mas estou me adiantando às críticas.
A trama também é bem conduzida e com bons cliffhangers entre episódios.
Alguém no Mastodon (droga, não guardei o link) comentou que a opção por dar mais espaço para a história do Império e a forma como ele foi personificado também é muito interessante. Concordo.
Então quais são os problemas?
Vamos começar pelo pior.
Os heróis messiânicos
Na minha opinião o pior problema é a inversão da base da história original em que os rumos da humanidade dependem de movimentos coletivos para mais uma história que cultua o herói messiânico que, sozinho, tem o poder para mudar toda a humanidade. No caso um pequeno grupo de heróis e anti-heróis.
Isso não seria um problema se eu achasse que essa visão messiânica é real, positiva, original ou pelo menos útil nesse momento.
Curiosamente repete-se bastante na série que “Não é esse o princípio da psico-história? Que as ações de um indivíduo não tem impacto no curso da história?”. Não creio que seja uma ironia com a base da história do Asimov, acho mais provável que seja simplesmente incoerência, que não foram capazes carregar para a tela essa ideia. Talvez por acharem que seria um fracasso sem heróis ou mudando de heróis a cada passagem de século.
Vou abrir um parênteses aqui.
(Vi comentários de que os produtores achavam que a história não daria certo sem personagens que atravessassem todas as temporadas, os mil anos de história, e que tinham dado um jeito nisso, o que pode explicar a criação dos heróis, mas também poderiam ter criado alguns personagens imortais que fossem observadores ou tivessem arcos pessoais sem influenciar o rumo da galáxia.)
Acontece que eles tinham uma história ímpar nas mãos, que propõe questionamentos muito úteis no momento que vivemos, em que somos levados a crer que temos que carregar individualmente o peso de resolver os problemas climáticos, políticos, econômicos, culturais, religiosos, psicológicos, por Harry Seldon! É coisa demais e é daí que vemos sair heróis e anti heróis messiânicos que na verdade não passam de fenômenos das tendências coletivas. Isso é tema do Meme de Carbono, mas posso plantar a pulga dessa ideia em um parágrafo menor que esse.
A ascensão do conservadorismo hipócrita e de tendências teocráticas se mostra no mundo inteiro, das Américas à Europa passando por cada um dos continentes do nosso pequeno planeta. A menos que você seja uma pessoa crédula que cai nas teorias da conspiração, deve estar pensando que isso pode ser um fenômeno natural diante de um período de intensas mudanças em quase todas as áreas indo da ciência e tecnologia à comunicação e relações econômicas.
Essa sessão ficou grande demais e nota-se que a minha maior crítica à série é bem discutível, então vou colocar de outro jeito: Será que precisamos de mais uma história de super heróis? Principalmente ela tendo sido inspirada em uma história em que a humanidade e não heróis é a protagonista? Que nos convida a uma visão coletiva em vez de cultos ao individualismo?
Uma galáxia pequena
Esse é um problema menos polêmico hehehehe.
Apesar dos cenários grandiosos e até se falar na série que existe uma infinidade de sistemas e culturas acho que não sentimos essa grandiosidade. Os locais parecem pouco habitados e temos muito tempo de tela para os protagonistas.
Seria algo fácil de resolver com algumas cenas em lugares populosos, grandes tráfegos de naves no fundo… Os meios são numerosos. Ao invés disso quase todas as locações parecem pequenas tribos com umas dúzias de habitantes.
Pode ser uma forma de retratar o decaimento do império, mas o livro nos dá diversas lições de como passar essa ideia sem transformar civilizações inteiras em pequenas vilas medievais.
Na obra original as naves tem tripulações maiores, os portos e cidades tem milhares de pessoas e grande movimentação comercial e cultural. Seria difícil colocar isso na série? Francamente não acho. O cinema sabe fazer isso muito bem.
Soluções Jornadas nas Estrelas
Veja bem, nada contra Jornada nas Estrelas, sou fã, inclusive, mas as soluções para as crises nela são jogadas tecnológicas, ejetar o motor de dobra, teleportar alguma coisa. As qualidades maravilhosas de Star Trek estão em outras coisas.
Já na obra original de Fundação não é assim. As crises são resolvidas muito mais com engenho, subterfúgios políticos e diplomacia do que com algum golpe de poder tecnológico. Aliás a própria série da Apple chega a citar uma frase, acho que de Salvor no livro: A violência é o último recurso do incompetente.
Eu me pergunto. Se na obra original já estavam prontas as instigantes estratégias políticas, mais uma vez reforçando que a inteligência e o engenho são os melhores caminhos para o equilíbrio, porque isso foi suprimido na série?
Receio que a explicação esteja na decisão de simplificar Fundação para atingir um público menos inteligente…. Pessoalmente acho que a maioria das pessoas é inteligente o suficiente para acompanhar qualquer trama complexa, principalmente depois da série alemã Dark hehehehe.
No entanto talvez o maior problema disso seja a supressão do caráter político de Fundação que podia ser usado, como na obra original, para falar em ganância, corrupção, arrogância política, tramas palacianas… Até mesmo no núcleo Imperial da série, onde se vê alguma trama palaciana, ela parece ser colocada com pressa e com a mínima complexidade. Como se as pessoas não tivessem acabado de se deliciar com as intrigas de Game of Thrones.
Estou citando outras obras aqui ou ali para mostrar que não se trata de tarefa impossível, principalmente já tendo o trabalho pronto nos livros.
Claro que a série ficaria muito longa, mas apenas porque decidiu-se criar vastas histórias para personagens dominam os séculos de história. Ou seja, decidiu-se simplificar Fundação, mas grande parte da riqueza da obra está justamente em suas dimensões, que nem são complexas.
Personagens achatadas
Eu falei no início do post que analiso as obras sem cobrar fidelidade à obra original, mas não dá para esquecer a quantidade de material que a Apple dispunha nos livros que poderiam ser usados na série.
Salvor, Mallow e tantos outros são personagens com nuances, assumem posições de poder em vez de serem heróis solitários como na série. Por mais que goste das personagens e interpretações da série é decepcionante ver mocinhos que só faltava usarem roupas brancas e enfrentar bandidos de roupas pretas.
O fato é que não consegui abstrair a comparação entre a obra original e a derivada, mas porque essa última foi me parecendo cada vez menor, restrita no tempo, ingênua em seu maniqueísmo.
Resumindo
Apesar de ser derivada de uma obra vasta em quase todos os sentidos, da percepção da passagem dos séculos às instigantes tramas políticas passando por uma visão coletiva dos rumos da humanidade e por uma galáxia povoada e rica em diversidade, a série acaba se mostrando grandiosa apenas visualmente, mas pequena, humilde e clichê em seu maniqueísmo e heróis messiânicos.
Se a intenção era evitar a grandiosidade ou talvez até polêmicas em torno da ideia da solução para os problemas das civilizações ser a construção de uma consciência política coletiva penso que seria perfeitamente possível simplesmente criar histórias dentro do universo da obra deixando a fundação e mesmo o império como pano de fundo, se concentrar apenas em um período de poucas décadas da história. Fazer de Fundação a nave mãe para uma construção transmídia, sei lá.
Do jeito que ficou descartou-se quase tudo que Fundação tem de especial, mas não se inseriu outras coisas que tornem a obra também especial, surpreendente, memorável.
Imagem que ilustra o post
Kit de divulgação da Apple TV.
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