Consideração inicial
O amigo que me indicou, e que assina a cinematografia, fez a advertência padrão: é um filme com uma visão diferente.
A gente devia buscar sempre culturas com visões diferentes e essa advertência devia ser desnecessária, entretanto é muito possível que você, que chegou aqui de paraquedas, praticamente só tenha visto filmes mais ou menos com a mesma estrutura de história, ângulos de câmera etc. e isso não é culpa sua pois vivemos até ontem uma cultura de massa em que as indústrias colocam quase todos os seus esforços na produção e divulgação de obras que possam atrair o máximo possível de consumidores.
Essa introdução é necessária para te fazer o convite, caso seja uma pessoa acostumada à zona de conforto dos filmes mais populares, a assistir não só esse, mas outros filmes com “visões diferentes”.
Ah! Pode seguir lendo o post pois não farei spoilers (não gosto de fazer isso e acho desnecessário).
O que é, no caso de Cidade Pássaro, a visão diferente?
Imagino que o que deve chamar mais atenção de quem não tem costume de ver filmes mais criativos são as tomadas que focam em um detalhe por um tempo um pouco maior ou trechos de imagens que parecem não acrescentar muita informação, mas são preciosos para você juntar em sua mente os sentimentos que estão te acompanhando e até mesmo encontrar significado em uma cena que à primeira vista pode parecer que é apenas uma pausa.
O ritmo do filme na minha opinião não é lento, mas para quem está acostumado a histórias que nos dão disparadas de emoções pode parecer pouco dinâmico, no entanto é uma questão de redescobrir um dispositivo que sua mente tem e muitas vezes não é exercitado em uma civilização que corre no ritmo contrário da lentidão dos longos engarrafamentos das grandes cidades: a disparada de associações e emoções que vem quando temos tempo de compartilhar dentro de nós da jornada das personagens na tela.
Finalmente a própria história é… intrigante e é necessário pensar que você que assiste a jornada também faz parte dela e suas ramiificações e se completa nas suas experiências pessoais, suas memórias, seus estereótipos. Esse tipo de história pede o exercício de outra qualidade humana preciosa: a empatia; a capacidade de sairmos das interpretações do mundo pela nossa perspectiva e buscar outras que frequentemente nos surpreendem. Essa inclusive talvez seja uma das qualidades mais importantes para construir o seu futuro e tem sido uma das mais atrofiadas…
A sinopse
Você poderia ler no IMDB ou em qualquer outro site que tenha falado do filme, mas a gente sabe que clicar num link nos leva para o infinito. Além disso é mais prático ler logo aqui sem risco de spoiler e acho que tenho alguma coisa interessante para acrescentar.
Amadi é um homem nigeriano que vai para São Paulo procurar seu irmão mais velho, Ikena, que foi muito bem sucedido na cidade, mas deixou de dar notícias. É um drama familiar com suspense: qual é a relação dos irmãos e da família, como é a cultura familiar na Nigéria? O que aconteceu com Ikena? Como o contato com uma megalópole nos transforma? Que influência as expectativas dos outros tem na nossa jornada de amadurecimento?
Além disso é uma história em que não há vilões ou heróis no sentido mais comum, é uma história com pessoas bem reais e, em decorrência das diferenças culturais entre Brasil e Nigéria, formas diferentes de enxergar a vida.
Cidade Invisível
Esse é um antigo encanto que as cidades tem sobre mim e talvez devessem ter sobre todas nós: as cidades invisíveis que acontecem em incontáveis camadas de cada grande cidade, cada camada com suas misturas de cultura (ou homogeneidade em algumas regiões), gêneses, histórias e papéis na estrutura de subsistência e cultura do conjunto da sociedade.
Esse filme transita entre duas ou três cidades invisíveis dentro de São Paulo, mas não como se fosse um cumprimento de cotas, uma inserção superficial para atender às expectativas de diversidade do mercado moderno, mas trazendo essas vidas para a tela como quem traz uma pessoa amada, uma memória importante.
O impacto do filme em você
Não tenho como saber, né? ;-)
Vai depender muito do quanto você conseguir exercitar o eco interno do filme na sua mente e emoções e sua capacidade de sair da sua zona de conforto e viés para entrar nas visões de mundo dos personagens nigerianos que dominam a narrativa.
Talvez você esteja se perguntando “e eu com a cultura nigeriana?”, então vou compartilhar um segredo que você muito provavelmente esconde em seus genes: suas origens nigerianas. Eu e minha esposa fizemos mapeamento genético e, apesar de 70% europeus (e ela até com um % inuíte) temos quase 20% de ascendentes desconhecidos vindos… da região da Nigéria.
A humanidade é muito mais próxima de uma tribo de parentes do que parece quando olhamos para cidades com mais de 10 milhões de habitantes que se sentem únicos e solitários.
Além disso as questões da jornada de amadurecimento, da nossa relação com a complexidade da sociedade a que temos que nos ajustar e outras que não vou citar para não fazer spoiler, te dão várias oportunidades para sofrer impactos que podem até não ser agradáveis, mas certamente serão úteis.
Considerações finais
Escrevi esse post pensando muito mais em quem não busca diferentes expressões e visões culturais ou artísticas ou que não percebem que não estão buscando, o que não é uma falha das pessoas, é apenas um desperdício de oportunidades de viver novas coisas, mas, claro, há momentos e períodos que precisamos do conforto do previsível. Também não tem demérito nisso.
Outro ponto que vale destaque é que me pareceu que a produção teve o cuidado de não só pesquisar a cultura nigeriana, mas também de trazer atores migrantes de lá que inclusive da etnia igbo.