Acabei de assistir há pouco o quarto e último episódio da série Adolescência na Netflix. São tantas pessoas comentando que é essencial que não tinha como não ver. Na verdade podia até ir para o meu blog de cibercultura, o Meme de Carbono, mas achei que a série se enquadra melhor aqui porque é uma excelente criação artística, mas não creio que deva ser vista como a análise de um fenômeno social.
Primeiro sem spoilers…
São quatro episódios e quatro cenas pois cada episódio é um único plano sequência muito bem roteirizado e atuado para criar um estado constante de tensão e imersão nos acontecimentos e nas emoções das pessoas.
A tensão é pelo mergulho em um universo de sentimentos e ideias bem pesado e não por qualquer apelo gráfico ou sustos. É bem tenso estar naquele ambiente em que as pessoas parecem cada vez mais presas não só no plano sequência, mas em um labirinto onde não sabemos como entramos e menos ainda como sair.
Nós somos postas no lugar de uma pessoa observando o que está acontecendo e não dentro dos pensamentos ou sentimentos das personagens, então o julgamento, ou não, de cada uma delas fica por nossa conta.
A série também não apela para generalizações ou estereotipações nos apresentando a pessoas muito reais, palpáveis com quem podemos nos identificar. Por outro lado também não vejo intenção de explicar o fenômeno ou apontar caminhos. É uma obra que nos coloca em contato íntimo com um caso individual e fictício ainda que certamente existam casos reais praticamente idênticos.
Vale a pena assistir tanto pelo aspecto cinematográfico quanto pelo necessário contato com um enorme problema que vem crescendo aceleradamente conforme as redes sociais foram convertidas em mídias sociais mediadas por algoritmos, mas isso é assunto para o meu outro blog. Vale a pena assistir, mas deixo o aviso de que é realmente bem tenso e aconselho ler a sessão com spoilers depois que terminar a série.
Agora com spoilers…
Vou fazer uma introdução à sessão com spoilers para dar tempo para quem não viu a série ainda.
Aliás, vou aproveitar e deixar aqui o convite para seguir o blog no Fediverso… Coisa que vc não deve saber ainda o que é, pelo menos a maior parte das pessoas que eu conheço não sabe, então deixei o link para você saber o que é o possível futuro das redes sociais (se tudo der certo)
Em geral eu não faço spoiler porque não acho necessário e porque não gosto, mas essa série pede isso porque trata de um problema enorme, avassalador, que todos nós estamos enfrentando e quem não está enfrentando, muito provavelmente, só não percebeu ainda.
O problema são os efeitos que temos sofrido com a transformação das redes sociais em mídias sociais cujo objetivo é capturar o máximo possível do nosso tempo e atenção. É um problema muito sério para muitos adultos e catastrófico para as crianças, que ainda por cima, se veem obrigadas a entrar nesse campo minado por imposição social, para não ser a pessoa esquisita, rejeitada, excluída.
A série não tenta explicar o fenômeno, ela joga um olhar profundo em um caso hipotético como quem pinta um quadro, mas sem dar um título a ele, sem fazer julgamentos morais ou mesmo sem dar respostas categóricas.
No primeiro episódio vemos os primeiros momentos da prisão de Jamie, sua negação o tempo todo de que teria feito alguma coisa, a perplexidade dos pais e da irmã. O que vemos é uma família normal diante de uma catástrofe que não imaginam que poderia acontecer com ela. Os policiais são muito gentis, mas a prisão é violenta, sem qualquer compaixão. Já nesse início podemos achar que o problema não está apenas no jovem sendo preso, mas também numa violência naturalizada que, diz o advogado, é o procedimento. O episódio termina com a prova indubitável de que Jamie cometeu o crime.
O segundo episódio nos leva para três dias depois quando a polícia visita a escola de Jamie em busca de informações que possam levar ao motivo do crime e à faca usada para cometê-lo. Vemos uma polícia que ignora os códigos dos jovens e, pior ainda, professores que também ignoram. Achei preocupante se for real. A consequência é que eles não percebem que os comentários da Katie nos posts de Jamie no Instagram são acusações de que ele é redpill (e esse não é um problema restrito ao Reino Unido ou aos EUA. Já é muito presente no Brasil). É necessário que o filho do policial, que estuda na mesma escola, traduza as mensagens. Vemos tanto em Adam, o filho do policial, quanto em Jade, melhor amiga da Katie, adolescentes que não sentem que encontram suporte e comunicação dentro da própria família, mas não devemos julgar pois não fica claro se eles se afastam ou se os pais não sabem se aproximar, muito embora, na família de Jamie tenhamos o exemplo de Lisa, irmã dele, que está bem integrada à família. A policial Misha critica a atenção dada a Jamie e não à história da vítima, mas a série segue quase ignorando essa crítica, o que faz sentido já que realmente é assim que tem acontecido. É até compreensível pois são as motivações do assassino e não alguma culpa da vítima que temos que entender.
O terceiro episódio foi o meu preferido. Jamie é avaliado pela psicanalista Briony (excelentes atuações, alías) sete meses depois da prisão. A sessão, que começa amigável, segue em um crescendo de frustração e agressividade de Jamie nos colocando em contato bem próximo com a visão confusa e distorcida de mundo dos redpill. Jamie se sente feio e logo excluído da corrida de popularidade adolescente. Ele precisa desesperadamente da admiração de Briony, dos elogios que ela não dá. Talvez a sequência não seja realista aos olhos de profissionais da saúde mental, mas é intensa e mostra tanto o estado de perturbação de Jamie quanto o da psicanalista diante da intensidade daquela interação. Jamie praticamente confessa o crime para ela, mas parece não enter que o que fez foi errado, como se fosse lícito fazer o que ele fez porque era uma mulher que desafiou sua masculinidade.
No quarto e último episódio vemos o estado de fragilidade da família de Jamie 18 meses depois da prisão. É aniversário do Eddie Miller (pai do Jamie) e a família enfrenta o desprezo e hostilidade da vizinhança, a dificuldade de obter trabalho e as provocações de adolescentes que picham a van de trabalho de Eddie, mas nada disso é o pior. O pior para eles é o abismo profundo que se abriu sob seus pés quando Jamie fez o que fez. Como ele pode ter feito aquilo? Onde eles erraram? O que mais poderiam ter feito? Vemos os três tentando viver uma vida normal, tendo momentos de família feliz ainda que sob a sombra de ter perdido Jamie para um comportamento que eles (e aparentemente nem Jamie) entendem. Penso que foi uma ótima decisão não colocar Jamie em uma família disfuncional, afinal existe mesmo um enorme elefante no meio dessa sala, um mundo paralelo online onde os jovens tem vivido e os pais não sabem entrar.
Conclusão
O que mais me preocupa é que a série seja vista como uma representação geral do que que está acontecendo, como se todos os jovens pudessem se tornar Jamies. O adolescente da sua vida que passa horas no computador pode não estar sendo transformado em um monstro, ele pode até estar sendo salvo como foi o caso de Ibelin.
Talvez a série devesse terminar indicando boas fontes para os pais ou tutores se informarem, terem acesso a ferramentas para entender o que esses jovens estão passando e como criar espaços onde possam coexistir e se defender de “bad influencers”, que é outra série, essa documental, da Netiflix, mas de pouco adianta documentar os problemas sem apontar caminhos. Isso só gera insegurança e conformismo. Ou ainda pior, tentativas violentas de tirar os adolescentes “das telas”, que que é equivalente a extirpá-los do convívio social, ainda que seja um convívio social tóxico.
Muitos problemas antecedem a vulnerabilidade a mídias sociais.
Os jovens estão sem perspectivas de futuro em uma sociedade que muitas vezes chegou ao consenso comum de que o mundo está fadado ao fim em breve (não está). Sentem a pressão de se preparar para uma idade adulta em que não sabem que tipo de trabalho poderão exercer, isso quando chegam a pensar em ter futuro para trabalhar. Adolescentes frequentemente tem dificuldade em olhar para o futuro.
É tudo pior para os homens… Sim… Não estou protegendo o machismo, estou dizendo que os homens precisam descobrir novas formas de identidade, de serem homens ou de serem alguma coisa e não é nos pais, forjados em outro modelo de masculinidade, e muitas vezes simplesmente ausentes ou inexistentes, que eles acharão esses modelos, então ficam mais vulneráveis a discursos machistas projetados e “marketizados” para seduzir jovens e adolescentes em um verdadeiro recrutamento de seitas.
Existem caminhos para ajudar os jovens, homens, mulheres e toda a diversidade, a encontrar novos modelos. Seria ideal que os governos assumissem esse papel no sistema de ensino já que a grande maioria dos pais, mães e tutores simplesmente não tem tempo ou ferramentas para entrar nesses mundos cibernéticos. A solução também passa pelos adultos se tornarem menos dependentes das janelas sociais online e timelines infinitas e, finalmente, sei que é pedir demais, no entanto seria importantíssimo se pudéssemos nos esforçar para sair do nosso lugar e buscar empatia e alteridade com os nossos jovens. Não é uma geração perdida, é uma geração que terá, que já está enfrentando desafios emocionais e intelectuais assombrosos enquanto tenta se tornar adulta.
Conteúdo recomendado
Na ordem de mais importante no topo
Vou trazer mais links em breve (passa da meia noite agora e nem revisei…).
- Crianças, adolescentes e telas: Guia sobre usos de Dispositivos Digitais – GovBR
- Naruhodo
- Entrevista com Vanessa Cavalieri no podcast da Folha, Café da manhã
- Protocolo Eu Te Vejo (PDF)
- Perfil do “protocolo Eu Te Vejo” no Instagram (Devia ter no Fediverso)
- Análise técnica da opção e execução da filmagem em plano sequência (YouTube)