É a noite do último dia de 2020 e amanhã nada terá mudado. A política será a mesma, a vacina não terá chegado (e sabem os cavalheiros do apocalipse quando chegará), as contas não mudarão (exceto a da luz que aumenta), o auxílio emergencial acaba e os bancos voltam a tirar dinheiro dos pobres para dar aos ricos… É… Algumas coisas estão mudando para pior, mas nenhuma delas importa.

Ainda ontem, meros 2050 anos, morria o último deus do Egito e a humanidade seguia lentamente para longe do jugo e a caminho do empoderamento que demoraria perto de 2000 anos para ser percebido.

Só importa a mudança sutil que percebemos na última noite de 2020 com muito menos vozes nos vizinhos, no silêncio da pousada que durante a pandemia abrigava festas, na orla que abrigava 3 milhões de pessoas recebendo a décima parte disso.

Ainda assim nos aperta o coração o baile na comunidade próxima que começa no primeiro minuto do novo ano e persiste por 9h28. Talvez tenham entendido que suas vidas nada valem para o governo e para os privilegiados e decidido viver o prazer do ar fluindo livremente pelos pulmões mais uma vez, talvez queiram levar a vingança microscópica para o asfalto ou podem apenas ter desistido de sofrer e decidido viver enquanto der. Não tenho como saber, mas sei que atrás dos seus olhos estão mudados e em transformação. Estamos todos, todas, todes…

Minutos para a alvorada, o dia já claro, do morro erguem-se aos céus as luzes ofuscadas de fogos de artifício que os privilegiados não tiveram. Oito minutos ruidosos e frágeis que logo são suprimidos pelo silêncio que cresce, ainda que inconsciente, em nossos sentimentos e expectativas. O silêncio de quem perdeu, o silêncio de quem sabe, ainda que tente não pensar nisso, que causou perda e dor.

Teve uma chuva. Primeiro violenta e repentina, mas potente o bastante para trazer um arco-íris duplo por alguns minutos, depois firme, mas persistente. Serviu para inspirar, serviu para fortalecer a simbologia do fim de ciclo e renovação. Por dois dias ainda persistirá em uma valsa com o Sol; rodopiando e se alternando no salão da vida. Indiferentes ao que simbolizam para nós.

O que nos reservará nossa capacidade de transformação e amadurecimento no ano que se inicia?

O que os humanos, que já temeram os imperadores-deuses, que já se encolheram diante dos poderes dos leviatãs reais e imaginários, mas continuam caminhando mesmo nas mais rudes tempestades em busca de significado para suas existências nos reservam para 2021?

Ao longo desse ano foi difícil acreditar em nós, não é mesmo? Muita gente foi obrigada a se expor abandonadas por quem devia preservar, acima de tudo, a vida da população que é braço, pernas, coração e essência da humanidade. Em 2020 os governos falharam mais do que em qualquer outro ano, mas teve os que funcionaram, quase todos de viés humanista e de esquerda e outros servindo a sociedades já marcadas pelo senso comunitário.

2020 deixa essa lição: quem cultiva a comunidade, os valores humanistas e a atenção à realidade que a ciência é capaz de nos mostrar é mais resiliente, mais capaz de lidar com os desafios que exigem maturidade, adaptação e algum esforço.

Os bailes, no entanto, persistem…

Photo by Alexander Popov on Unsplash