Ele suporta o peso do corpo sobre ele, o líquido quente que escorre por suas costas, ele sabe, é sangue do seu companheiro de rua, mas se fizer um movimento saberão que ainda vive e virá nova saraivada de balas.

“Tenho que ficar quieto, tenho que ficar quieto”

Sua mente repete a mesma frase sem emoção com medo de um acesso de choro traidor que lhe custaria a vida.

Memórias desfilam sob as pálpebras fechadas lutando para romper o coração apertado no peito.

As peladas de pés descalços na rua de barro onde, depois das chuvas, se acumulavam grandes poças de lama que fazia cócegas nos dedos descalços quando ele ia na casa da vizinha que tinha uma boneca e os maiores olhos das redondezas. Um amor infantil que logo ele esqueceria depois que a mãe e ela sumiram fugindo do pai violento. Por que estava se lembrando disso justo agora quando sua vida estava por um fio? 13 anos esperando por este momento, tendo certeza de que não veria os vinte anos, mas agora se apegava a cada fiapo de vida que podia.

Frio, fazia muito frio. Era noite, chovia um véu de gotas amareladas contra a luz dos postes ao redor da igreja. O cheiro de água se misturava aos odores familiares das sarjetas e dos trapos empesteados que ele nunca se incomodou em vestir, mas agora se lembrava dos dias soltando pipa e sonhando com uma casa chique, uma lancha e viagens pelo mundo.  Não estudou porque estudo não dá dinheiro a ninguém, só roubando se enriquece neste país.

Eles se movem ao redor, o braço fino de outro moleque, uns anos mais novo que ele, escorrega caindo sobre seu rosto. Os homens encapuzados se viram com olhos injetados de ódio indiferente, prontos a disparar como quem muda o canal da TV. Ele tem vontade de chorar, sente um fiapo quente escorrendo dos seus olhos e já não sabe se é sangue de alguém ou suas lágrimas, mas reza para o Deus que nunca lhe sorriu para que a chuva não os deixe perceber que ele ainda respira, que ainda tem forças para se arrastar sem sentido pelo mundo mais uns anos.

Mais além, não muito longe, os motores dos carros roncam como o vento que agita as árvores nos bosques escuros dando cobertura aos passos furtivos dos predadores… Ele achava que era um dos predadores quando as pessoas na Central o olhavam com medo ou desprezo, ele nunca soube diferenciar.

Num estrondo tudo se apaga à sua volta, seus ouvidos emudecem, seus sonhos mergulham na escuridão, os homens encapuzados desaparecem para sempre seguidos pelo ronco potente dos seus carros envenenados.

Imagem: Rape of the Sabine Women, Peter Poul Rubens