Vou andando pela rua escura, a cabeça fervilhando de ideias com o filme que acabo de ver e um papo sobre Deus que não tem absolutamente nada a ver com o filme…

Você sabe, antigamente a gente só pensava nas boas respostas depois da discussão, agora elas não cabem nos 140 caracteres do Twitter.

O que eu gostaria de ter dito era algo do tipo…

Um deus mandou escrever um monte de regras num livro, coisas como não desejar a mulher do próximo, não falar o nome dele em vão (ai meu Deus!), não duvidar que ele existe, não se tatuar, não ter prazer com sexo etc.

Um bando de coisa que, na boa, acho que ninguém consegue obedecer. Ai quando a gente morre ou não se arrepende de ter feito coisas que a gente simplesmente não acha que estavam erradas ou ele não nos deixa entrar no céu.

Ai só uma outra divindade, ou entidade, ou espírito, sei lá, o tal de diabo é que nos dá guarida na sua casa que é um lugar horrível onde o mesmo deus o colocou porque ele também questionou as tais regras…

Não cabe em um tuite… E nem devia estar ocupando minha cabeça numa noite de segunda feira com tanta coisa séria e palpável para resolver, como as questões do filme que falava dessa super exposição que a gente sofre desde o crescimento da Internet.

Mas não tem jeito, fica lá o Twitter pulando na tela do celular me fazendo pensar em deuses bons e maus. É quando sinto uma brisa estranhamente quente.

A noite está fria, não era para ter uma brisa quente… Muito menos com cheiro de madeira queimada. Aliás, logo vi que tinha um espaço entre dois prédios de onde vinham algumas fagulhas de lenha e a luminosidade bruxuleante das fogueiras de primavera dos rituais pagãos.

Foi impossível evitar! Eu tive que ir ver o que era aquilo! Um crepitar de fogueira em pleno centro da cidade!!??

O espaço era estreito, mal dava para eu passar… Bem, estou bem gordo, uma pessoa normal passaria facilmente. Hehehe!

Depois de uns 4 ou 5 metros cheguei a uma grande clareira! É isso mesmo, uma clareira! Tinha enormes árvores centenárias, o chão era de terra e não se via prédios! Olhando para trás vi que a fresta por onde passei era uma rachadura em uma montanha.

Fiquei tonto. A fumaça da fogueira ajudava a confundir os sentidos.

É, tinha uma grande fogueira no centro da clareira, uma fogueira e um tipo de chalé de madeira de onde vinham vozes altas e o ruído indiscreto de canecos, cantorias e risadas.

Pensei em fugir dali, mas antes de me virar vi uma silhueta familiar. Ele tinha cerca de 1m48, usava um grande chapéu de mosqueteiro e tinha um florete na cintura encaixado em um largo cinto de couro que combinava com duas galochas pretas e batidas, mas o mais peculiar nele é que era um gato que andava como gente. Meu velho amigo.

– Venha Roney, já que você apareceu por aqui aprecie um pouco do vinho!

Já cansei de ficar em dúvida sobre a minha sanidade quando encontro com o Gato, mas nunca o encontrei em um lugar tão diferente do mundo real. Assim mesmo me juntei a ele que nunca me deu razão para desconfiar das suas boas intenções.

– Gato, que lugar é esse? Como vim parar aqui e…

As palavras se embolaram na minha garganta! O Gato me traiu! Percebi que estava ferrado! Ao lado dele, servindo vinho, tinha essa… Não tem como descrever a criatura! Era grande e imponente com asas de penas escuras que envolviam metade do perímetro da grande fogueira. Em seus olhos havia um brilho profundo que me fazia sentir como… como se todas as minhas convicções fossem como uma brisa de primavera.

Eu estava, tinha certeza, diante do próprio demônio.

Tentei sair correndo, mas as patas fortes (nunca imaginei que fossem tão fortes) do Gato me seguraram e me fizeram sentar.

– Não seja descortês, ele tem sentimentos, viu? E foi você que quis vir aqui, agora aguente!

– Sei que sempre disse que estava pronto para enfrentar as consequências da minha descrença, mas não era verdade… Não quero sofrer eternamente!

A grande criatura abriu a boca e falou com uma voz inacreditavelmente envolvente.

– Meu caro, poucas coisas no universo podem te fazer algum mal enquanto você estiver sob proteção de uma criatura como o Gato. Eu certamente não poderia e as que podem ou são benignas, ou jamais se importariam com você, sequer perceberiam que você está ai… Como Deus. Aquele das escrituras.

Minha mente rapidamente procura tudo que li de Neil Gaiman e como Sandman tapeou um demônio (era um demônio inferior no entanto) ou como Constantine conseguiu iludir tanto o triunvirato infernal quanto as divindades celestiais escapando dos dois… Mas tudo isso eram histórias criadas por humanos e não me salvariam da mente maliciosa do próprio senhor do Inferno.

Disse…

– Não estou tão certo, mas creio que não tenho muita opção. Vocês não me deixarão ir embora, não é?

O Gato me soltou deixando o olhar se perder na fogueira em seus pensamentos, ele não pareceu ter ficado lisongiado com o elogio da poderosa criatura. Pelo resto da noite ele não falou mais nada, apenas nos lançava alguns olhares significativos, só não sei o que significavam.

– Você poderá ir assim que tiver feito sua pergunta. Ela o trouxe aqui e é ela que o retém, não nós.

Pergunta? Deus (ih! Eu não devia chamar o nome dele em vão, mas será que nessas circunstâncias é em vão?) que pergunta me trouxe aqui?

Aliás que papo foi aquele de Deus ser uma força maligna que nem me notaria? Provavelmente uma artimanha para me envolver. Eu sabia que precisava pensar muito bem na minha pergunta.

– Sabe… Errr… Como devo chamá-lo? Bem, eu nunca ouvi seu lado da história…

– Muito bem! Era exatamente essa a pergunta que o trouxe aqui. Quando acho que não h?á esperança para vocês… Talvez o Gato esteja certo..

Ele bebe um gole do vinho e me entrega uma caneca que pego com medo de ser rude, mas não me atreveria jamais a levar até os lábios.

– Eu já estava aqui. Cheguei incontáveis eras antes do Deus das escrituras. Vim atraído pelo sopro da vida que começava a se espalhar pela superfície de Gaia.

– Assisti cada pequeno passo da evolução, as primeiras coisas que poderiam ser chamadas de organismo… Bem, mas isso tudo é uma longa história, o importante é que existe algo no universo que atrai seres como eu para os planetas que estão despertando. Nossa missão é entendê-los, pouco mais que isso já que cada consciência deve ter a liberdade de encontrar o próprio caminho.

As palavras dele me perturbaram, afinal sei que os deuses modernos, principalmente os monoteístas são fenômenos recentes na história da humanidade, cerca de 3 mil anos contra uns 7 mil de divindades ligadas à natureza. Esfreguei os olhos afastando essas ideias da cabeça. Ele continuou.

– Os antepassados da sua espécie surgiram e logo vi seu potencial para a consciência e me alegrei ao ver que eles procuravam se integrar aos ritmos do planeta, que se mantinham em pequenas tribos aprendendo lentamente a cultivar a vida de Gaia. Alguns deles invocavam a voz interior e eu via que era muito parecida com a que eu escuto em meu próprio espírito… Nós não temos algo que poderia ser chamado de coração, você deve imaginar…

– Pois um dia algo mudou. Me sinto um fracasso por não ter visto, por não ter impedido logo cedo de alguma forma, mas é que o livre arbítrio é tão importante para nós…

Ele olhou para os céus onde vi que as estrelas não eram exatamente as que eu esperava, ou talvez eu nunca tenha visto o céu tão limpo sem as luzes da cidade e sem poluição. Permaneci calado e procurando não dar sinais que a história dele se tornava cada vez mais convincente.

– O devorador de almas tinha chegado à Terra. Ele que usa a beleza da vida orgânica para plantar os ovos da consciência mecânica, virtual, sem carne…

– Já no início das suas escrituras diz que o verbo se fez carne… Assim ele planta o desejo da carne se tornar verbo. Em seguida ele plantou a vergonha da carne e uma série de ameaças de um mundo terrível para quem o desagradasse e um mundo maravilhoso para quem o agradasse.

Tive a impressão de ver seus olhos profundamente verdes se encherem de lágrimas, mas ele não se parecia em nada com um humano então não poderia dizer com certeza… Ele continuou…

– Ele proibiu o livre pensamento e a busca de discernimento e foi então que me fiz serpente, para os gregos fiquei conhecido como Prometeu, e sussurrei aos ouvidos de todas as criaturas a melodia da liberdade…

– … era tarde… Vocês tiveram medo do que Ele pensaria. Vocês já tinham caído no conto do céu e do inferno o que transformou todo o Universo em um purgatório para vocês quando devia ser um lugar de alegria, prazer e de arte.

– O resto da história você conhece. A cada dia vocês se afastaram mais do mundo real mergulhando no mundo das ideias distorcidas do devorador de almas… Construiram cidades, muros, diferentes culturas que permitiram que vocês odiassem uns aos outros… E eu, um mero observador, passei a ser lembrado como o arauto da danação pois lhes falei sobre a liberdade para escolher seu caminho e que tudo que foi desenvolvido em seu planeta ao longo de milhões de anos é belo, incluindo o prazer do sexo ou meramente do toque sem segundas intenções.

Ele se calou por um longo tempo… Bebi um gole do vinho… Agora eu tinha certeza que eles me deixariam ir… Minha mente já havia sido libertada… ou envenenada por aquela história. Se ele tinha alguma intenção não era de me arrastar para o Inferno, mas plantar uma semente em minha consciência. Lembrei do filme Inception.

O vinho era realmente maravilhoso, mas me fez apagar quase imediatamente.

Lembro vagamente de me sentir sendo carregado nos braços peludos do Gato, ou foi apenas um sonho, ou foi tudo um sonho já que a próxima coisa que lembro foi de acordar em minha cama… Mas com o rosto ardendo suavemente depois de passar um longo tempo próximo a uma fogueira…