Advertência: Esse post é uma crônica que mergulha em emoções ligadas à pandemia da covid-19. Se isso pode ser um gatilho para você recomendo não ler e visitar a página anti-ansiedade sobre a covid-19 para ter apenas informações sobre como se proteger e boas notícias.

Ouço silêncio. Foi uma noite silenciosa de sexta, é uma manhã silenciosa de sábado.

Nas ruas, dizem, eu não saberia dizer pois desde 12 de maio não vou além do portão do meu prédio, pessoas se aglomeram em bares, caminham pelas praias… entretanto os apartamentos ao redor, pretensos castelos dos humanos modernos em mais um devaneio com a grandeza que não passava de monumentos a uma sociedade desequilibrada onde uns podiam dormir em um quarto por dia sem repetir de cômodo por um, dois, talvez três anos e outros compartilhavam um cubículo com suas numerosas famílias, emudecem um a um desde março.

Não é a mudez sábia de quem decide calar ou a mudez genética que constrói nossa identidade e abre novos horizontes e mundos. É a mudez densa do mergulho silencioso numa crise estrangulada entre os labirintos da nossa percepção inadequada para perceber tribos de milhões de vizinhos sem rosto.

Nas ruas e praias sempre há milhares de rostos que fluem de milhões de castelos que vão emudecendo conforme a epidemia os alcança. Inexoravelmente os alcança levando sua ilusão de invulnerabilidade, deixando sequelas, lhes tirando pessoas amadas ou em quem se apoiavam e agora buscam onde segurar sem encontrar.

Dizem que tem quem esteja vivendo normalmente sem ser tocado pela covid-19, mas não é o que vejo ao olhar ao redor.

Tem aquela varanda na cobertura mais à frente onde sempre andavam homens e mulheres vestindo suas sungas e biquínis e festejavam cada aceno do mito da indiferença, grosseria e intolerância que acabara de chegar ao cargo político mais importante do país. Há algumas semanas está vazia. Mudaram-se, ou se apagaram…

Todo final de semana escutava ecos de diversos pequenos castelos, minhas janelas dão para centenas deles pois estão num ponto mais elevado da vizinhança.

Tem faltado às pessoas que vão às praias e fluem pelas ruas noturnas uma visão mais elevada da vizinhança. Elas serão amanhã os habitantes dos castelos que vejo se emudecerem ao redor.

Também tem a pousada numa rua atrás do nosso prédio onde, ocasionalmente, surge uma festa que pode durar três dias lotada de jovens e adultos caminhando à beira de um precipício cuja altura ainda não sabemos, se apenas nos causará arranhões ou se deixará sequelas para as décadas vindouras. Esse é um castelo de contos de terror onde os próximos viajantes que se instalarão dele desconhecerão o destino de quem veio antes enquanto os senhores do castelo contam as pratas recebidas. Espero que guardem duas para os olhos de cada visitante que escorregar pelo precipício da pandemia.

Ouço a cacofonia nas timelines do Twitter e do Facebook: “otário!”, “todos em vida normal!”, “eu em casa e as praias cheias”, “seis meses sem um bar e nem máscaras aquele pessoal usa!”.

Frustração e indignação. A sensação de esforço inútil pelo coletivo, de fazer papel de idiota… Os estrangulados na pandemia são o bom senso, a realidade, a esperança, o pacto social de colaboração pelo bem geral e basta umas poucas dezenas de milhares em milhões para que as ruas e praias fiquem repletas de lacaios dos cavalheiros do apocalipse enquanto, em suas casas, milhões se encolhem em suas camas suando estrangulados e afogados temendo a morte e rezando pela cura.

O Brasil está estrangulado…