Passo para cima no TikTok e vejo um homem adulto contando que mostraram seu perfil e vídeos para sua mãe e ela, furiosa, cortou relações.

O homem segue falando que os vídeos não são ataques a ela e da importância de mostrar a outras pessoas que nem toda família é saudável. Não se trata de falar mal dos pais, mas compartilhar experiências que são dele.

Uma das coisas mais pesadas de relacionamentos tóxicos é perder o direito de falar da nossa própria vida para, supostamente, proteger o lado abusivo da relação.

Lembro de uma amiga que perdeu o pai há pouco e o carinho das saudades dela. Penso em outra amiga que ainda hoje sente muita falta da mãe e do pai. No entanto também lembro da amiga cujos pais votaram recentemente um um projeto político empenhado em destruir pessoas como ela, a própria filha. Percebo que certamente o último caso é muito mais frequente no meu meio. Percebo também que raramente vejo homens falando da relação com os pais.

Espero que as duas primeiras famílias sejam mais comuns, mas a minha experiência pessoal também não foi nada boa.

Hoje tenho 56 anos e ainda evito o assunto publicamente para não magoar meus pais, que podem vir a ler esse post inclusive.

Esse blog nem tem grande alcance atualmente, umas dezenas de pessoas talvez cheguem a esse post a cada semana, mas lembro bem de como me sentia só quando era adolescente e se algumas pessoas se sentirem representadas e apoiadas já vale a pena escrever.

Desde os 11 anos eu fazia planos para sair de casa até que consegui aos 18.

Veja bem, não é que meus pais tenham sido seres perversos ou que minha infância tenha sido terrível. Nada disso.

Meus pais são apenas duas crianças dos anos 1940 perdidas no crescente turbilhão de mudanças da nossa civilização. Cresceram, se tornaram adultos e chegaram à meia idade iludidos achando que o mundo era imutável e, obviamente, têm bastante dificuldade em se ver como “mutantes” que precisam se transformar religiosamente, culturalmente, socialmente para entender e se ajustar a um mundo cada vez mais complexo.

Já o filho (eu) cresceu nos anos 1970, em meio a Star Trek, hippies, Senhor dos Anéis, Demian (do Hermann Hesse. É. Não devia ter lido isso aos 11 anos, mas foi), revoluções sociais, tecnológicas e mudanças até nas bases da percepção da realidade.

É até estranho perceber que tem pessoas da minha geração que são tão inflexíveis ou até mais do que os meus pais. Espero que a geração Z não arranje desculpas para se tornar reacionária.

A propósito… Só faz sentido compartilhar a minha experiência se ela ainda for útil para novas gerações, as que são filhas da geração que veio depois da minha, lá pelos anos 1980 em diante.

Aí vejo umas jovens de 20 e muito poucos anos, que cursam uma universidade de bioquímica, humilhando uma colega de 40 anos porque seria velha demais para estar ali.

Será que elas são perversas por conta própria ou tem pais e mães que lhes deram uma visão distorcida? O quanto é comum jovens ainda tão retrógrados?

Percebeu que estou enrolando? Quem lê um texto como esse espera, suponho, um relato tipo “Cristiane F” ou “Com licença, vou à luta” (de Eliane Maciel).

Enrolo porque não acho fácil dizer coisas que podem magoar meus pais, então primeiro procuro defendê-los justificando-os pela história de vida deles. Ambos, aliás, de origens bem humildes, o que significa ainda menos contato com filosofias e culturas mais dissonantes. A cultura deles era dos programas pop do rádio e um pouco do cinema dos “anos dourados”.

No entanto não é apenas isso. Também é difícil correr o risco de causar desconforto pois, mesmo com 56 anos, as marcas de ter crescido em uma família medianamente disfuncional e com alguma perversidade, ainda doem.

Também é necessário fazer a autocrítica: será que não sou eu que sou sociopata e não me apego?

O que veio antes: me tornei uma pessoa emocionalmente muito independente por causa do meu relacionamento com os meus pais ou é minha a culpa por não demonstrar carinho por eles como as pessoas normalmente demonstram carinho ou, pelo menos, como eles esperavam receber carinho e admiração?

Aos 56 anos essa é uma reflexão relativamente fácil, mas para a pessoa ainda na adolescência é um questionamento bem pesado e me atrevo a dizer que o afeto também é um espectro não binário como gênero e orientação sexual, que tem pessoas naturalmente menos calorosas e outras mais agarradas.

A gente não devia ter que lidar com isso apenas dentro da família. As escolas ou o Estado devia ter alguns dispositivos para nos acolher na adolescência e na infância.

Lembro de uma amiga de quando eu tinha uns 12 anos. Ela se “divorciou” dos pais e foi morar com os avós. Teve até processo jurídico se não me engano. Eu a admirava muito por ter tomado essa atitude.

Esse é um post que não vai terminar nunca. Uma memória leva a uma ideia que leva a uma memória, que leva a uma ideia… Pelo jeito não estou pronto para escrever sobre isso no espaço restrito de um post.

Tem coisas que a gente precisa escrever do jeito longo antes de poder escrever de uma forma mais sintética, né?

Vou apelar para o código da casualidade blogueira e terminar por aqui ;-P um dia volto ao tema!

Se tem uma coisa que posso recomendar é o que procuremos todes ser capazes de ouvir o outro nos esforçando para ter empatia e alteridade entendendo que podemos mudar muito de uma geração para outra. Algumas pessoas tem muita dificuldade com essa coisa de empatia e alteridade e, nesses casos, uma das partes precisa entender isso e aceitar que pode não ter como criar uma esfera de relacionamento.

Foto de Sydney Sims na Unsplash