É preciso não confundir fé com crença, ainda que pareça óbvio que são duas coisas.

Fé tem a ver com esperança, com a confiança em alguma coisa, uma ordem cósmica ou alguém que garante alguma segurança nesse mundo cheio de perigos e, principalmente, pensamentos assustadores.

Crença… O que mais encontramos ao redor hoje em dia é gente com crença e sem esperança, sem fé, mas crença está ligada à sensação, à convicção, de que existe uma consciência ou ordem consciente superior.

Como pode ter crença e achar que a humanidade é podre ou que é um mal? Principalmente quando a maioria das crenças modernas envolve crer que a humanidade é a imagem e semelhança do deus criador do Universo, aliás, teoricamente o único deus que existe?

A senhora de 80 anos olha para a neta que se revolta com o julgamento da mídia sobre as brigas de um casal público que se acusa mutualmente de violência física.

– Crucificaram o cara, agora crucificam a mulher que assumiu ter partido para a violência também! Sei lá, eu!? Não estava lá no meio dos dois e não é da minha conta! – A neta está visivelmente irritada, ah! Os 16 anos…

– O espiritismo nos ensina que não cabe a nós julgar, filha, – a avó chama todos de filhos e filhas – é lá do outro lado ou na próxima encarnação que as pessoas vão pagar…

A senhora tem um olhar plácido e de quem sabe das coisas, mas a neta para no meio de uma inspiração, os olhos subitamente entre incrédulos e irritados.

– Pera aí! Assim também não! A justiça precisa apurar e recompensar quem foi lesado, mostrar que não tem impunidade, senão fica um caos onde todo crime tá de boa! A gente precisa que as coisas sejam julgadas aqui ou vamos sofrer o caos sem ter culpa de nada!

A avó assume um ar um tanto soberbo antes de desafiar a neta com uma charada de sabedoria.

– Minha neta, você sabe o que é a Terra?

– Hein, vó? Ué? Um planeta? Como assim “O que é a Terra”?

– A Terra é um planeta de expiação, só vem para cá a escória!

– VÓ?!?! Como assim? Eu não sou escória! Conheço um monte de gente boa! Como você diz uma coisa dessas?

Mas não é a avó que diz, é sua crença, ou pelo menos é o que a avó pensa que a própria crença diz.

A avó se inclina para frente e assume o olhar e o tom de quem fala com uma criança ainda ansiosa que lhe digam o que pensar, como pensar.

– Nessa vida sim, mas a gente paga pelo que fez em outras vidas e não nos lembramos…

– Isso é absurdo! É como se entrasse alguém ali por aquela porta, me jantasse na porrada e dissesse que era por uma coisa que eu não lembro que fiz! Como a gente vai se corrigir se não lembramos do que fizemos? É só uma questão de vingança, para que os que sofreram com o que a gente não sabe que fez tenham algum prazer com o nosso sofrimento? Isso é doentio, vó!

A avó dá de ombros, o colega da neta que bebia um café com leito meio sem saber o que fazer no meio dos raios e trovões dá uma mordida no croquete que a padaria acaba de trazer e diz que está horrível! A mesa toda olha para ele surpresa pois todos gostaram e assim as brumas levam a discórdia para longe, talvez a necessidade de permanecer em família sopre as brumas suavemente, talvez aquelas pessoas não levem suas diferenças tão a sério, ou ainda, talvez a idade avançada ainda inspire algum respeito nos jovens.

No entanto são tempos difíceis para as crenças que parecem fazer cada vez menos sentido nos deixando sem ter de onde tirar esperança e fé, pelo menos sem uma fonte sobrenatural. Talvez seja hora de buscá-las em nós mesmas e em outras pessoas, na ciência e no que a realidade inescapável dos ritmos da natureza e dos movimentos do Cosmos tem a nos ensinar.

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