Solitários

As ondas quebram sobre a areia 200 metros adiante. Ele observa da janela de sua casa saboreando a melancolia do céu encoberto, do dia frio sozinho em casa.

Ele está sempre sozinho em casa pois seus pais nunca estão lá. É evidente para ele que haverá uma separação, mas os dois talvez não percebam isso. Passam tempo demais trabalhando, mergulhados em suas agendas e, quando estão juntos, sempre é em eventos com dezenas de outras pessoas em que é necessário manter o verniz social mentindo tão profundamente que nos esquecemos da verdade até deitarmos a cabeça no travesseiro macio e os espinhos aflorarem em nossa consciência enquanto lutamos para não pensar e para dormir pois amanhã será outro dia…

Marcos aprendeu a viver sozinho. A observar os adultos porque tem poucos amigos, todos tem poucos amigos em seu meio e classe social pois as crianças estão cercadas de tantas tarefas e deveres que não tem tempo para se dedicar a tolices.

Correr descalço pela rua ou na praia jogando areia uns nos outros? Nem pensar! Não seria condizente com sua posição na sociedade.

Seus pais estão viajando há uma semana, coisa que acontece desde que ele tem 14 anos.

Antes disso eles não o deixavam sozinho pois não confiavam em babás. Ele ia com os pais a todas as viagens.

Isso era legal, mas também era árido. Os lugares eram áridos, os aeroportos eram áridos… Talvez seus pais fossem áridos, mas isso era algo que ele ainda não tinha pensado pois lhe parecia que todos eram assim, menos aquelas pessoas sem classe que corriam pelos corredores ou que ele via da janela dos hotéis andando de bicicleta, sujas e suadas. Gente sem classe. Assim que ele fez 14 anos e seus pais acharam que ele podia cuidar da casa sozinho passaram a deixá-lo quando viajavam.

Marcos interpretou isso entendendo que sempre tinha sido um fardo para os dois que preferiam cuidar das carreiras a ter que arrastar uma criança e, agora que ele entrava na adolescência, poderia notar coisas que eles não gostariam que ele notasse. Pior ainda, poderia fazer comentários que eles não gostariam que ele fizesse.

Sua mãe trabalhava no mercado financeiro, em contato com os mais poderosos grupos empresariais do país e usava seu círculo de influência para jogar na bolsa de valores privilegiando alguns clientes e prejudicando outros deliberadamente. Era o jogo econômico. Algumas pessoas passariam da riqueza para a miséria, mas isso era culpa delas que não souberam identificar os sinais.

O pai era um “salvador de empresas”. Ele era chamado para consertar as ricas o suficiente para lhe pagar. Empresas que falhavam porque não tinham bons produtos ou tinham ótimos produtos, mas não sabiam como fazer o marketing. O papel dele era identificar os casos piorando produtos bons demais para serem mais comercializáveis (Marcos o ouviu uma vez ao telefone: “você não dá o melhor para o mercado, vc dá um pouco melhor e deixa o resto debaixo da manga”). Marcos tinha certeza que o pai também tinha sido responsável pelos remédios ineficientes que tinham levado um laboratório a disparar na bolsa de valores antes que descobrissem. Pouco depois os pais compraram outra propriedade em um país estrangeiro onde os valores de aluguel são altíssimos.

Marcos ainda não completou 17 anos, mas quando os pais viajam ele fica responsável por tudo na casa.

Desde cedo ele percebeu que era um tipo de investimento, alguém que os pais teriam para cuidar das suas posses quando eles já não pudessem cuidar ou simplesmente estivessem cansados.

Ele tinha a impressão de que os pais não gostavam do que faziam, era apenas algo que faziam bem e gostavam da segurança de ser ricos.
A casa ficava em um condomínio de casas cercado por um muro com guaritas e câmeras de segurança. A cada vinte minutos Marcos via um segurança passar pela rua olhando de um lado para o outro e sabia que eles mantinham contato com uma central a cada cinco minutos para confirmar que estava tudo bem. Além disso, é claro, as casas tinham sistemas de alarme.

Medo… Marcos nunca foi de sentir medo. Ele se sentia só, mas há tanto tempo que já não sabia que se sentia assim, é o que acontece quando nunca nos sentimos de outro jeito, é como descobrir a felicidade pela primeira vez quando no passado o melhor que tínhamos eram momentos de alegria. Mas Marcos está longe de descobrir o que é não estar só.

Solidão é algo muito mais familiar para as pessoas do que seu oposto, afinal nem existe um antônimo satisfatório: acompanhado? Marcos estava só mesmo acompanhado, e seus pais também. Ele estava só, mas não sabia.
Afastando os pensamentos Marcos decide que é melhor voltar para as planilhas de tarefas que ele elaborou para manter tudo em ordem: verificar a posição dos investimentos (ele também participa do mercado financeiro desde os 15 anos), ler as notícias econômicas do dia, organizar os deveres que precisa fazer amanhã, ligar para a prestadora de serviços para encomendar um técnico para fazer a manutenção preventiva nos sistemas de segurança da casa.

Algo estranho…

Há dois dias Marcos se sente incomodado. Inseguro. Como se alguma coisa estivesse errada, espreitando no limite da sua visão periférica.

Por várias vezes ele se flagrou olhando para a praia como agora, mirando o infinito esperando que algo surgisse. Esperando não, temendo.

Não foi um ruído, ou algum movimento estranho, nada que ele percebesse conscientemente, mas sua pele se arrepiava algumas vezes por dia. Seus instintos diziam que havia algo errado.

A rotina era a mesma: A van da escola vinha pegá-lo de manhã de segunda a sábado (hoje é domingo) e o trazia de volta no final da tarde.

Na escola havia a mesma sucessão de aulas e atividades de sempre. O tempo livre era gasto em jogos de poder entre os colegas, todos miniaturas de adultos, aliás nem tão miniaturas pois as atividades físicas os faziam se desenvolver mais rapidamente, entretanto um jovem de 17 anos que se comporta como adulto sempre tem aquele traço definível de “miniatura”. Aquele ar de esforço de parecer firme, inabalável, mas fervendo com hormônios sob a pele.

Essa talvez fosse a grande diferença entre ele e seus colegas e seus pais: os velhos já tinham gasto todos seus hormônios em excessos de bebida, festas secretas e partidas de tênis que mais pareciam jogos de poker em que todos se esforçam para esconder seus segredos e descobrir os dos outros.

É, mas Marcos não sabia de nada sobre isso também, assim como não sabia que era solitário. Provavelmente não perceberia quando se tornasse adulto também: nós temos que ver as alternativas para fazer comparações. Sem isso somente um louco que se entregue a devaneios pode sair da redoma em que vive. Marcos não é um louco que se entrega a devaneios pois sabe que, se fizer isso, ficará em desvantagem, será enviado pelos pais a um psicólogo e os colegas de escola farão pouco dele… não necessariamente nessa ordem.

Podemos bloquear nossos devaneios, mas não nossos instintos e os de Marcos lhe diziam que havia algo errado.

Enquanto observa as ondas quebrando interminavelmente na praia e assiste o guarda passar pela quinta vez diante da sua casa ele tenta lembrar há quanto tempo está com essa sensação.

A viagem dos pais e ficar sozinho em casa (os pais não voltarão antes de dois meses) não marcaram o início do mal estar. Desde o início desse período letivo, há cinco meses, ele sente esse incômodo.

No colégio percebeu que de vez em quando se surpreende por estar olhando para trás onde só há uma parede (ele senta na última fileira).
É uma parede com alguns quadros de aviso, anúncios de colônias de férias, transferências de alunos, cursos extras como taekwondo, observação do céu e finanças aplicadas além de alguns recados colocados pelos próprios alunos.

A maioria dos recados são de caráter prático: “procuro três pessoas para formar grupo de estudos sobre a consequências sociais da Revolução Francesa” ou “Foi achada uma carteira no jardim de meditação. O dono deve se dirigir à coordenação para reclamar sua posse”.

Era isso! O aviso da carteira estava lá desde o primeiro mês do período.
Alguém teria que tê-la perdido logo nas primeiras semanas de aula, no entanto o recado ainda estava lá. Meses sem que alguém reclamasse a carteira.

Marcos passou os olhos por aquele aviso provavelmente centenas de vezes enquanto buscava outros mais importantes. Aquela carteira não devia conter nenhuma pista do dono ou a coordenação o procuraria diretamente. Como pode uma carteira não ter um cartão de biblioteca? Uma identidade? Um cartão-passe?

E por que isso incomoda tanto a Marcos? Talvez um funcionário da escola tenha perdido a carteira ou fosse de um aluno que foi transferido, isso acontecia o tempo todo pois os pais se mudavam de cidade ou país. No entanto uma perturbação percorria os nervos de Marcos. Conexões se estabeleciam em seu inconsciente alertando para tomar cuidado.
Será que outros alunos teriam notado o mesmo ou algum outro sinal de que algo estava errado?

Francamente, o que poderia ir mal entre pessoas no topo da cadeia de sobrevivência?

É claro que havia entre eles representantes de todo tipo de poder, de políticos a cientistas importantes, mas seria necessário um poder maior para quebrar o anel de segurança em torno deles.

“Isso faz parte da nossa vida… Nós temos que carregar o mundo nas costas e as ameaças reais ou não nos assombram o tempo todo. Talvez eu não devesse deixar que isso atrapalhasse minha concentração. Tenho provas em duas semanas” pensou enquanto se afastava da janela, sentava diante do computador e se preparava para verificar a lista de tarefas.

Ligou para a prestadora de serviços e marcou a verificação do sistema de segurança para dali a três horas.

Organizou o que ele precisaria para fazer os trabalhos escolares no dia seguinte. Não seria necessário fazer hoje pois há períodos determinados para fazê-los durante o dia de aula.

A escola era muito rígida, mas deixava o domingo livre.

Marcos se levantou, foi para a mesa grande com todo material de estudo do dia seguinte e passou as próximas 3h se dedicando febrilmente a adiantá-lo: passaria os períodos dedicados aos trabalhos no dia seguinte explorando a escola começando pelo quadro de avisos e depois pelo jardim de meditação que é um jardim chinês com lago, uma ponte vermelha passando por cima e várias pedras colocadas sobre areia branca cuidadosamente escovada para formar círculos ao redor das pedras.

Visita

Um sinal grave soou pela casa em um ritmo monótono e constante: tommmm tommmm tommmmm

Era o sinal de que alguém havia atravessado o portão principal que dá acesso ao jardim.

A cerca que separa a casa da rua é propositalmente baixa para que os seguranças possam ver os jardins conforme passam olhando de um lado para o outro e as câmeras em seus óculos possam registrar tudo. Elas estão programadas para destacar na lente do óculos coisas que tenham mudado de lugar.

Se um deles estivesse passando agora teria visto a pessoa atravessando o portão de Marcos envolvida em uma aura verde e um nome flutuando sobre ela: Ricardo. Sob ele teria a informação “Casa 28B – Amigo”
Dentro da casa Marcos pega seu celular, destrava e abre o aplicativo que mostra basicamente a mesma coisa que mostraria ao segurança, mas com uma informação extra: compromisso – nenhum.

Se eles tivessem agendado alguma coisa a informação estaria ali. Por que Ricardo estava se aproximando da sua porta sem combinar antes?
Ele andava calmamente como sempre.

Ricardo era seu único amigo, ou pelo menos o que eles consideravam amigo que é alguém que tem os mesmos interesses que você e habilidades complementares tornando-os bons parceiros para fazer trabalhos em grupo e maximizar suas possibilidades. Parcerias assim costumam render futuros acordos comerciais interessantes ainda que seja comum naquele meio esconder esse tipo de amizade para manter mais uma vantagem competitiva: em um acordo comercial com um terceiro jogador é vantajoso para os dois se ele não souber da sua relação prévia.

Era por isso que raramente os dois passavam muito tempo juntos offline preferindo se encontrar na segurança de aplicativos de chat.
a etiqueta padrão determina que Marcos deve esperar que a campainha soe para ir até a porta atender, mas, instigado por seus instintos cada vez mais aguçados, ele se adianta logo até a porta e olha pela tela enquanto Ricardo se aproxima. Seu olhar não condiz com seu ritmo de caminhada. As sobrancelhas estão cerradas e os olhos transmitem preocupação.

“O Marcos deve estar em casa, onde ele estaria a essa hora senão em casa? E ele é alguém em quem posso confiar” – Ricardo se esforçava para não olhar para os lados o que deixaria transparecer sua preocupação.

Seus pais receberam mensagens logo cedo, ele ouviu o som de  notificação de seus tablets, viu suas expressões preocupadas logo em seguida e observou enquanto eles mergulhavam tão profundamente em alguma atividade nos tablets que não perceberam quando ele saiu.

Sua família morava ali havia somente seis meses, ele quase não havia conseguido se matricular na escola. Foi uma mudança repentina. Tudo na vida dele era repentino e seus pais trabalhavam em algo que ele nem imaginava o que poderia ser.

Ele tinha instruções claras do que ele deveria dizer que os pais faziam: Projetos de Marketing para o pai e design de interface com o usuário para a mãe, mas era claro que não era essa a atividade real deles que passavam grande parte do dia no porão à prova de som onde ele jamais podia ir. O que os pais faziam lá dentro ele só conseguia imaginar, mas sem qualquer evidência que confirmasse suas ideias: cientistas trabalhando em um novo tipo de arma? Médicos desenvolvendo um tipo de micro organismo nano-robô secreto que pode nos tornar invulneráveis às piores doenças? Ele não sabia.

Estava claro, no entanto, que algo não estava bem. Os dois tinham suor na testa… Eles nunca suavam. A única vez foi quando ele se cortou em alguma coisa em um tipo de fábrica que eles estavam visitando e ele teve que ir para o hospital.

Enquanto eles o levavam de carro suas testas suavam e seus olhos ficaram fundos e transtornados, ele não tinha mais do que 11 anos, mas percebeu muito bem.

Somente quando saíram os exames de sangue eles voltaram ao normal e até riram. Era estranho quando eles riam.

Ricardo se sentia importante para eles, talvez por causa desse evento, mas nunca lhe foi permitido fazer parte da vida dos pais.

Em público eles eram uma família comum e feliz. Faziam piqueniques, compareciam a eventos da escola onde se comportavam como uma família normal exceto por uma coisa: eles eram uma família normal diferente de acordo com o lugar onde estavam.

Ao longo dos seus 17 anos completados no mês passado, Ricardo morou em vários países, estudou em várias escolas, frequentou diversos clubes. Foram oito mudanças e oito vidas diferentes.

Agora eles eram uma família feliz muito mais circunspecta do que jamais tinham sido.

Seus pais diziam que temos que nos ajustar ao meio onde vivemos e ser nós mesmos apenas por dentro, mas dentro se referia ao espaço restrito das nossas próprias mentes e não meramente dentro de casa pois lá eles não eram nada, mal eram uma família.

Boa parte do parco tempo que eles tinham, não mais do que duas horas diárias, era dedicado a prepará-lo para se comportar no novo ambiente e, depois que eles viam que ele tinha compreendido e absorvido o novo meio de vida, finalmente se pareciam mais com uma família, mas ainda assim o tempo era muito restrito e não dava para muito mais além da função disciplinadora que todos os pais deviam ter.

Ricardo poderia ser um adolescente rebelde e mimado, mas seus pais não eram do tipo que faz os desejos dos filhos para compensar suas ausências. Eles só lhe davam atenção quando ele se expressava calma e logicamente.
Uma única vez, quando tinha em torno de oito anos, ele decidiu conscientemente levar sua manha às últimas consequências e continuou obstinadamente resolvido a não parar enquanto não conseguisse o que queria (um brinquedo ou um sorvete, ele já nem lembrava mais). Seu plano era perfeito. Eles estavam em um ambiente público e seus pais ficariam com vergonha daquela criança escandalosa chorando, berrando e se debatendo. Quando sua mãe o segurou pelo braço dizendo que entrasse no carro ele se debateu mais atirando as mãos pequenas contra ela: não deixaria que o levassem para casa onde poderia ser colocado de castigo no quarto e esquecido até que cansasse de berrar.

Seus pais se entreolharam por uma fração de segundo. Cada um se virou para um lado caminhando rapidamente. Quando os oito anos de experiência de Ricardo lhe disseram que os dois estavam indo embora já era tarde demais para alcançar qualquer um dos dois.

O carro ficou parado no mesmo lugar. Seus pais deviam ter ido embora de outra forma ou deixaram o veículo como um ponto de referência para o pequeno Ricardo.

Foram as seis horas mais longas da sua vida. Já era quase meia noite quando os pais reapareceram sem dizer uma palavra. Abriram as portas do carro, entraram e partiram quase sem dar tempo a ele de entrar também. Eles nunca conversaram sobre o ocorrido e Ricardo entendeu que, com seus pais, ele teria que argumentar e aceitar a decisão deles. Certa ou errada.
Pode parecer que ele não os amava, mas não era assim, eles nunca eram maus com ele, não o diminuíam, apenas uma vez ele apanhou no rosto quando disse algo horrível sobre pessoas pobres. Seus pais eram bons com ele, só eram distantes e frios.

A porta se abre antes que ele tenha chance de bater.

“Oi Ricardo”

Marcos abre a porta totalmente e Ricardo percebe que deve entrar. Assim que ele entra a porta é fechada rapidamente. Será que Marcos sabe de alguma coisa? Bem, não faz muito sentido ele aparecer ali sem ter dado um aviso nem que fosse pelo chat.

“Marcos… Desculpe aparecer assim repentinamente e sem avisar. Eu… Errr… Precisava falar com alguém.”

“Quando tenho que falar com alguém uso um psicólogo robô online. Eles dão respostas tiradas de um vasto banco de dados sobre comportamento humano e costumam ser mais eficientes do que as pessoas psicólogas e, com um pouco de cuidado, dá para fazer isso de forma totalmente anônima. Tenho pavor de psicólogos… Eles nos fazem parecer fracos e nos tornam vulneráveis.”

“Não é bem isso Marcos. Olha, eu tenho notado que você está estranho e…”

“Como assim? Eu só notei agora há pouco que estou estranho.”

“Sério? Você anda distante, olhando para o infinito como se estivesse tentando lembrar de alguma coisa. Eu imaginei que fosse algum problema em casa, mas hoje meus pais receberam alguma notícia que os deixou preocupados de uma forma que eu nunca tinha visto, aliás, só vi uma vez e acho que tinha a ver com uma grande ameaça à nossa família”

Os dois estão sentados em poltronas opostas na sala. Entre eles há uma mesa de centro baixa de vidro escuro que é também uma tela onde é possível consultar notícias enquanto se bebe um chá.

Ricardo toca nela para ativá-la e abre uma planilha em que vinha trabalhando na nuvem.

É uma lista de outros alunos com o nome da escola e período que estudaram com ele.

Ele explica que faz esse controle em toda as escolas por onde esteve que é uma forma de manter uma rede de contatos mais coesa o que pode ser útil em sua futura vida acadêmica e profissional.

Há uma coluna muito mais povoada na escola atual do que nas outras: transferência.

A quantidade de alunos transferidos dali era enorme, três ou quatro vezes superior à dos outros colégios.

Ricardo afastou a planilha para o lado e abriu um agregador de notícias passando a copiar os sobrenomes dos alunos transferidos para que o sistema fizesse uma coleção de notícias relacionadas.

Cada nome virava uma pasta e linhas surgiam entre eles quando havia referências cruzadas, ou seja, os nomes eram citados juntos em várias matérias.

O resultado foi uma vasta teia de interligações com uma pasta que não estava ligada a nenhuma outra.

Ricardo jogou a janela em direção a Marcos que a girou com os dedos sobre a superfície da mesa e a ampliou. A pasta solitária tinha o sobrenome do Ricardo: D’Wolf. Sua família não tinha qualquer ligação com as outras que chegaram ou saíram da escola nos últimos meses.

“Tem uma outra camada… Os sobrenomes de quem já está na escola há bastante tempo. Deslize a barra lateral esquerda para ela aparecer.”

As novas pastas vão surgindo em outra cor, verde (as primeiras eram laranja), e as conexões vão surgindo. A maioria delas não se conecta intensamente com as pastas laranja, mas a pasta com o sobrenome de Marcos está ligada por uma única linha à pasta D’Wolf. É a única família ligada à do Ricardo.

“É por isso que vim aqui sem falar nada com ninguém, Marcos. O que está acontecendo? O que você notou hoje?”

Marcos encosta o dedo longamente na pasta da sua família para selecioná-la e depois na do Ricardo seguindo de um duplo toque rápido para abir as conexões entre elas.

O artigo fala sobre pesquisas de biotecnologia citando algumas empresas e o nome de um crítico voraz do uso da manipulação genética para produzir novos tipos de organismos. O nome dele e o de uma das empresas estão destacados.

Tocando no nome do homem aparece outro artigo datado de cinco anos antes sobre uma reunião às margens do lago D’Wolf que reuniu grupos de ativistas anti-biotecnologia.

Tocando no nome da empresa surgem dados da bolsa, principais acionistas e, entre eles, está o nome da família de Marcos.

Ricardo está diante dele esperando quando seus olhos se levantam tão consternados quanto aqueles que ele viu minutos antes em Ricardo diante da sua porta.

Será que seus instintos estavam lhe avisando do risco quele ele estava correndo, que tipo de contatos influentes um grupo ativista anti-biotecnologia pode ter? Seria o suficiente para se infiltrarem naquele condomínio e na escola?

As conexões intensas entre as famílias que se transferem são esperadas afinal o mundo deles é pequeno, mas a ligação exclusiva entre as famílias dos dois amigos é muito mais do que preocupante, seria um alarme mesmo que o que as conecta fossem partidas de golfe ou frequentar o mesmo supermercado.

Por que a família D’Wolf não se liga a nenhuma outra? Por que os pais de Ricardo parecem preocupados com a segurança da própria família (se os instintos de RIcardo estiverem corretos)?

“São muitas perguntas sem resposta, Ricardo… O que notei foi simplesmente que tenho me sentido… vigiado e em risco. Isso foi o que notei de fato, mas hoje percebi que tem um aviso de carteira perdida no quadro de avisos no fundo da sala há meses e isso foi como um disjuntor ativado na minha cabeça”

“Não está mais lá, Marcos”

“Hein? Como asim?”

“Ontem eu vasculhei o quadro buscando espaço para colocar um aviso procurando um grupo para fazer observação do céu. Tenho um bom telescópio com espaço para acoplar uma câmera, mas não domino o software que faz o rastreamento… Bem, só tinha espaço ao lado desse aviso, por isso lembro dele. Fiz o meu cartaz para caber naquele espaço e, quando fui afixar minutos depois, não estava mais lá. Tiraram”

“É melhor não perdermos tempo… Enquanto não sabemos o que isso tudo significa devemos avisar os nossos pais, concorda?”

Marcos faz um movimento com a mão sobre a mesa e abre uma janela com bordas vermelhas e com título “Comunicação Privada” preenchendo rapidamente uma mensagem para seus pais com o assunto “Cuidado” e no corpo apenas o nome do radical e  a palavra Biotecnologia.

Ricardo vinha observando a janela enquanto Marcos lia os artigos. O vigia estava atrasado alguns minutos.

“Marcos. Temos que sair daqui. Você não acha que existe a possibilidade de estarem atrás de você para chantagear seus pais ou coisa assim?”

Os dois correm em direção à porta dos fundos. Marcos utiliza seu relógio de pulso para desativar todos os alarmes da casa na esperança de não deixar registro da sua saída. Eles terão que driblar as câmeras de segurança do condomínio para o caso delas terem sido invadidas. Pode estar exagerando, mas não tem como saber.

Quando estão chegando à cerca nos fundos escutam uma enorme explosão e, antes que consigam se conscientizar dela, são arremessados por cima da cerca viva pelo deslocamento de ar. A casa de Marcos não existe mais.
A primeira sorte é que eles ficam atordoados e doloridos, mas ainda podem correr. A segunda é que a explosão certamente lhes dará cobertura já que todos os alarmes da vizinhança vão disparar e, quem quer que tenha explodido a casa, pensará que eles estão mortos.

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