Acabei jogos vorazes sexta-feira. Gente! Que trilogia pesada, né? Vai ficando cada vez mais sombrio, mas vamos primeiro a um aviso: Leia sem medo de spoilers até a frase “Pare de ler aqui” escrita em vermelho.
O terceiro livro da trilogia é bem diferente dos dois primeiros. Ele aborda muito mais a natureza dos sistemas políticos e jogos de poder de Panem tornando a obra bem mais adulta.
Logo nas primeiras páginas entendemos como é a vida no único bastião de liberdade de Panem e os primeiros 60% do livro envolvem um tipo de guerra de mídia entre a Capital e os distritos em que a imagem da Mockingjay é essencial para inflamar os espíritos dos rebeldes, mas Katniss continua relutante como sempre a respeito desse papel dela. Creio que, como a maioria de nós, ela sempre quis apenas duas coisas: viver em paz e ser responsável reagindo ao que acontece à sua volta. Infelizmente essas duas coisas são o contrário em um país onde uma parte da população é literalmente escrava da outra.
Essa primeira parte do livro nos leva a conhecer os questionamentos da Katniss ainda mais de perto e nos colocamos no lugar de um adolescente ou uma adolescente que se visse em um mundo como aquele. Imagina como a nossa cabecinha seria cheia de complicações.
Mesmo assim Katniss continua sendo uma pessoa fora de série, capaz de mexer com as nossas emoções simplesmente sendo ela mesma. A guria é uma força da natureza, né? Ela não pode ser moldada, não é capaz de fazer de conta, ela é especial quando é ela mesma, por mais problemática que seja.
Os 40% restantes do livro nos levam a… um confronto mais direto entre os rebeldes e a Capital, mas a autora continua achando espaço para nos permitir espiar os pensamentos e sentimentos mais íntimos da Katniss. É uma parte com muito mais ação, mas nem por isso se torna vazia. Na verdade achei melhor do que as sequências de ação na arena dos livros anteriores.
Jogos Vorazes tem muitas características que admiro muito, mas muito mesmo, em uma obra, no entanto as principais são duas.
Em primeiro lugar Suzanne Collins leva muito a sério o exemplo de Shakespeare em Hamlet e creio que nunca vi uma personagem que se analise tanto quanto a Katniss! Tenho a impressão de que, se a gente for contabilizar, só 20% do livro são coisas que acontecem, 20% são coisas que a Katniss pensa sobre o que está acontecendo e 60% são coisas que ela pensa sobre ela mesma.
Isso pode ser visto como algo ruim, como reflexo de uma sociedade narcisista e individualista, mas não consigo considerar a auto-crítica como algo ruim. E, a propósito, o narcisismo e individualismo são bem discutidos ao longo da trilogia e muito mais ainda nesse último volume. Vejo nisso muito mais um caminho para a solução do que algo que aumente o problema.
Fico pensando por que essa história fez tanto sucesso, por que tantos adolescentes leram avidamente esses livros?
Para Katniss o mundo gira ao redor dela, tudo acontece por culpa dela ou em função dela e isso é algo que sentimos fortemente quando somos adolescentes (pelo menos uma boa parte de nós sente assim) e isso explica um pouco, mas a realidade que gira ao redor dela é perturbadora e parece levar a um fim trágico, aliás pior que isso, Katniss não deve ter mais de duas horas de felicidade na série inteira.
Será que os adolescentes modernos estão em uma fase ultra-romântica (ok, quase todo adolescente é ultra romântico!)?
Jogos Vorazes não é uma história agradável de ler, ela é perturbadora e, desde o primeiro livro, temos a clara impressão de que aquilo não vai acabar bem para nossos heróis e mesmo assim continuamos a ler.
Essa é a segunda característica que gosto muito nessa trilogia: ela não é feita para nos alienar, meramente para nos distrair. Ela nos perturba, ela nos coloca em contato com um mundo cheio de sofrimentos absurdos que, no final das contas, não é muito diferente do nosso.
Acredito que essa proximidade com a nossa realidade social e política é a grande responsável pelo sucesso da trilogia. Nós queremos ver que final nosso mundo terá, que final nós teremos. Será parecido com o da Katniss, Peeta, Gale, Haymich, Cinna, Finnich? Que destino terão os tiranos do nosso mundo? Será o mesmo do Snow?
Será que o nosso destino será parecido? Todas as mobilizações que tem sido feitas pelo mundo em diversos países por pessoas que parecem muito com as que são exploradas nos distritos de Panem terão um bom resultado no final? Conseguiremos criar um sistema de governo melhor?
Ao chegar ao fim de Jogos Vorazes acho inevitável que uma parte da nossa mente pense de vez em quando nas semelhanças entre o nosso mundo e aquele e no que podemos aprender com a história.
Falar de Jogos Vorazes sem fazer spoiler é difícil porque grande parte da graça dessa história é comentar como os acontecimentos externos mexem com a protagonista e por isso decidi quebrar minha regra de não fazer spoilers e escrever o que vem a seguir.
Pare de ler aqui!!! SPOILERS
Então vamos lá.
Sinopse
Depois de ser colhida quase morta da arena no segundo livro Katniss desperta no distrito 13; uma sociedade que pode lembrar um regime comunista pela forma como eles foram obrigados a racionar recursos e criaram um estilo de vida estritamente simples.
Logo que a Katniss fica de pé ela passa a ser usada pelo governo do Distrito 13 para insuflar os ânimos dos rebeldes, coisa que ela faz muito bem quando fica indignada na frente de combate (ao ver um hospital ser destruído).
Fica claro desde o começo do livro que o governo do 13 não é muito diferente do da Capital, tudo se resume a poder.
Existe a promessa de uma sociedade democrática, mas Katniss se vê manipulada da mesma forma que era antes, é como se nunca tivesse saído da arena, é como se as pessoas comuns fossem só peões nos jogos de poder dos governantes.
Apesar de notar isso ela vai em frente pois quer se vingar do Snow por todo sofrimento que ele casou a ela e às pessoas que ela ama, principalmente depois que nota que o Peeta (que foi capturado pela Capital já no fim do livro anterior) vinha sendo sistematicamente torturado para ser usado como garoto propaganda da causa da Capital.
Uma operação de resgate é feita para trazer Peeta de volta somente porque ela não seria capaz de atuar contra a Capital sabendo que ele seria torturado em resposta. Essa era a forma que o Snow a controlaria.
Quando Peeta volta ele está tão traumatizado, sofreu tanta lavagem cerebral, que tenta matar aquela que ele um dia amou mais que a própria vida.
Também são recuperados Annie (que Finich amava e com quem se casa ainda nessa terceria parte), Johana e Enobaria.
Com os amigos em segurança Katniss pode se dedicar totalmente ao seu desejo de vingança: ela quer matar o presidente Snow.
Aproveitando um desastre que vira oportunidade ela e o grupo que estava com ela perto da frente de combate se infiltram atrás das linhas inimigas quando os rebeldes já estão atacando diretamente a Capital e se dirigem para a mansão do Snow para matá-lo. A desculpa dela é que, se o matarem podem acabar com a guerra com menos derramamento de sangue. A verdade é que ela quer vingança.
Quando ela está quase conseguindo chegar ao Snow acontece a primeira virada chocante da história… Centenas de crianças que estavam colocadas como escudo humano diante da mansão do presidente são atingidas por uma leva de explosivos. Os médicos do distrito 13, incluindo Prim, sua irmã, chegam ao local para cuidar das crianças feridas e uma segunda leva de explosões mata a Prim bem diante dos olhos da Katniss.
A explosão a fere gravemente, mas o dano maior é o emocional de ver sua irmã virar uma tocha incandescente bem na sua frente.
Com a pele marcada para sempre Katniss fica em um estado letárgico por dias, vagando pela mansão do Presidente que, quando ela volta à consciência depois de dias sendo tratada, já foi tomada pelos rebeldes.
Ela acaba conseguindo achar onde o Snow está preso e, ao encontrar com ele, fica sabendo que não foi ele e sim o governo do distrito 13 que detonou as duas sequências de explosões que mataram sua irmã. Ele não tinha razão para mentir.
Pouco depois, conforme tinha exigido, ela é levada para executar o Snow com uma flechada em um lugar público, mas antes disso Coin, presidente do Distrito 13, reúne os tributos sobreviventes para criar mais um Jogo Voraz, agora com as crianças da Capital, com a finalidade de dar aos distritos o sabor da vingança. Katniss vota a favor.
Na sequência ela é colocada na posição para executar o Snow, mas em vez disso ela mata Coin.
Suzanne Collins não explica o que levou Katniss a fazer isso e é melhor assim, mas uma das explicações que podemos apontar é que ela finalmente percebeu que o sistema em si estava errado e que a troca de governos, mesmo que se estabelecesse uma democracia, não faria grande diferença. Só uma coisa é clara: ela não fez isso por estar louca.
Snow morre ao mesmo tempo sem precisar de ajuda.
O livro termina com um período de suspense em que não sabemos o que acontecerá com ela, mas seus amigos, aqueles em quem ela na verdade nunca confiou, de quem nunca se permitiu aproximar, conseguem salvá-la desde que ela seja mantida sob observação na vila dos tributos no seu distrito que começa a ser reconstruído.
Um epílogo meio desnecessário, na minha opinião, mostra que ela acaba casando e tendo filhos com Peeta, afinal os dois foram tão destruídos no jogo de poder que não haveria ninguém mais para eles. Gale segue uma vida aparentemente normal.
Conclusão
O final da trilogia parece deixar bem claro que a história era a respeito de como a mente de uma adolescente corajosa e independente pode ser torcida vivendo em uma sociedade doente onde a democracia e a liberdade não conseguem encontrar defensores.
A autora nem se dá ao trabalho de dizer o que aconteceu com o governo, com a estrutura política ou social de Panem depois de todo o sacrifício dos nossos heróis.
É claro que imaginamos que o sistema se tornou mais democrático e também não há qualquer sinal de que voltou a se corromper, mas deixando isso aberto talvez ela nos deixe espaço para nossas próprias considerações e reflexões.
Enfim, é uma grande história que eu recomendo para todo adolescente maduro com mais de 11 anos.
Imagem do cabeçalho: Karmillina no Deviantart
Posts sobre os livros anteriores: